8º Dia - 16 de Setembro de 2002 – 2ª Feira

 

La Bañeza – Astorga - 24,8km

 

Pela primeira vez no Caminho o dia está muito cinzento. Faz hoje uma semana que comecei.

A saída de La Bañeza é fácil, mas lá continuamos com a paisagem de campos de milho intermináveis.
 
Hoje já estou mais animado. Ontem estava de rastos e passou-me muita coisa pela cabeça. O que estás aqui a fazer? Para que este sacrifício todo? Porque não apanhas um comboio, regressas a casa e descansas?
 
O meu aspecto visual está a ficar “diferente”. Há uma semana que não me barbeio. Enfim…
 
O dia está perfeito para caminhar. Tempo fresco, sem sol, sem chuva. Que maravilha.
Mas comochoveu dutante a noite, optei por calçar as botas Tecnica, pois são de gortex, ou seja, são impermeáveis e como eu pensava o caminho estaria todo molhado, enlameado e cheio de poças de água...
 

Deixei de lado as botas Timberland que tenho usado. Não são impermeáveis e como são mais “bicudas” magoam-me um pouco os dedos mindinhos. Estas Tecnica são melhores neste aspecto, mas vou ter de comprar umas palmilhas em Astorga para se tornarem mais suaves.

 

Quando fui ligar os dois pés descobri que só tinha trazido 1 ligadura elástica. Que parvoíce! Se temos dois pés, porque trazer apenas 1 ligadura? Enfim. O que me safou foram as ligaduras que a D. Manuela, que trabalha no HSE, me deu dizendo-me que ajudam o seu marido nas caminhadas.

Outra asneira foi ter vestido umas calças e não os calções. Foi um erro, e agora quando parar para comer irei trocar. Mesmo com o tempo instável e mais fresco não dá para caminhar de calças.
 
Alguns dos momentos mais singulares e marcantes do Caminho não tem a ver com imponentes Catedrais, cidades lindas, rios maravilhosos. Alguns aparecem, literalmente, ao virar da esquina.
 

A primeira povoação após sair de La Bañeza é: Palacios de la Valduerna. Uma pequeníssima aldeia que  segundo os censos de 2007 tem 484 habitantes.

 

 

 Palácios de la Valduerna

 
 

Eram cerca de 10.30 da manhã quando lá cheguei. Não se via ninguém. As pessoas devem andar a trabalhar no campo, pois comércio é coisa que por aqui não existe.

Cheguei a uma pequena praça e sentei-me um pouco a descansar. Como o meu pequeno-almoço foi apenas uma barra energética pensava encontrar um café e comer algo, beber leite e tomar um café. Mas não estava fácil de encontrar.
 
 

É então que um senhor, de seu nome Miguel, se aproxima e me cumprimenta. Digo-lhe que estou a fazer o Caminho e ele conversa comigo um bocado. Não sobre o Caminho, ou sobre a aldeia, mas sobre ele. Como se me conhecesse desde sempre começa a dizer-me que acabou de se reformar e que agora a vida dele é pesca, comer e dormir. Tem uma pequena horta onde cultiva alguns legumes. A pesca não tem estado a dar, pois como me conta, o ano passado houve grandes inundações por aqui e o peixe desapareceu. Depois conta-me sobre a família, sobre um filho que morreu, e quando dou por isso vejo que está a chorar, emocionado por recordar esses momentos duros da sua vida. Fico sem saber o que dizer, mas de certa forma fico agradado por ser o seu confessor, por ele ter confiado em mim para desabafar. Sei lá.

 
De seguida convida-me a ir ao bar da aldeia beber um vinho. Digo-lhe que ainda não são horas para beber vinho. E responde-me logo: - Então beba uma cerveja!.
- Mas, ainda são dez e meia da manhã. Ainda nem o pequeno-almoço tomei!
 
Lá vamos até ao bar e aproveito para comer um bocadillo e umas madalenas com um café com leite (galão para nós). É que agora tenho 14km de caminho até Cuevas sem uma única povoação. E até chegar lá, diz-me o guia que nem café por lá existe. E este trajecto vai ficar em cima da hora do almoço por isso opto por comer desde já. Depois de Cuevas são apenas 5km até Astorga.
 
Quando saí de Palacios de la Valduerna, parou uma carrinha ao meu lado e o senhor perguntou-me se eu ia para Santiago ao que respondi afirmativamente. E vais sozinho? E não levas peso a mais na mochila? Respondi: Pois vou, mas não há problema e a mochila já está mais leve.
Desejou-me boa sorte e partiu. Fiquei a pensar, realmente, se tenho por aqui um problema, encontram-me uma semana depois. Mas não há que pensar assim. E lá vou.
 
Nem de propósito me acontece o meu primeiro encontro de 3º grau com…cães!! Vou no trilho. Uma enorme recta, plana. Ao passar por uma quinta, onde não está ninguém, saltam dois enormíssimos cães à frente a ladrar furiosamente e a querem atacar. Estamos a falar de cães com a imponência do Serra da Estrela!! Não há vivalma à vista. Que fazer? Os cães vêm atrás de mim!! Socorro-me do meu bastão, aponto-o aos cães, mas sem os provocar e vou caminhando devagar, de marcha atrás, para não tirar os olhos de cima dos cães. Eles continua a rosnar e ladrar efusivamente. Se eles resolverem atacar, acho que me desfazem em segundos…Lá me vou afastando. Penso que caminhei uns 100 metros de recuas sempre com o bastão a apontar para os cães e eles sempre e seguirem-me. Até que desistem. E tão depressa como apareceram, assim regressam à quinta. Ufa!!! Agora assustei-me a sério. E uma coisa prometo a mim próprio: Nunca mais irei caminhar, seja onde for, sem o meu bastão!!
 

Mais à frente… novo encontro!! E eu que pensava que já me tinha safo dos cães!! Os que tinha encontrado anteriormente foi num trilho de terra longe de tudo, mas agora saltaram 2 cães a ladrarem para mim numa estrada de alcatrão!! Mas que se passa hoje com os cães? Razão tem o guia quando diz que o bastão não serve só para ajudar a caminhar.

 

Chego a Astorga e dirijo-me ao Albergue. Uau!! 150 camas!! É enorme!!! Tão diferente do que tenho vindo a utilizar.

Há dezenas e dezenas de peregrinos. De todos os países que se possa imaginar. Há gente com problemas físicos, pés, costas, eu sei lá mais o quê. É a confusão total. Não estou habituado a este ambiente.
Depois de me instalar saio para visitar Astorga. Embora esteja um tempo chuvoso não posso perder a oportunidade de ir visitar a Catedral e o Palácio Gaudí. Entro na Catedral mas pela hora tardia já não consigo entrar no Palácio Gaudí e amanhã quando partir ainda não estará aberto. Ficará para outra oportunidade.
 
 

 Catedral de Astorga

 

 

 

Palácio Gaudí

 


A chegada a Astorga tem muito significado para mim. É o encontro com o Caminho Francês, e para mim, o final da Via da Prata. Sei que ainda não cheguei a metade do Caminho, mas olhando para trás apercebo-me de tudo o que passei, as experiências vividas. A Fé que tem sido necessária para eu continuar quando passei por grande sofrimento. A vista de Astorga com a sua imponente Catedral dá-me as boas vindas. E eu agradeço.