6º Dia - 14 de Setembro de 2002 – Sábado

Benavente - Alija del Infantado – 21,2km

 

Quando me estou a calçar para iniciar mais uma jornada, sinto “algo” no dedo mindinho do pé. Quando vou ver tinha, não descubro uma simples bolha, mas um enorme “bolhão”!! Como não me apercebi antes?

Lá vou buscar novamente a linha e a agulha para coser mais esta. O resto do dia correrá bem, caminhando com a linha a atravessar a bolha.

 

Comparativamente aos dias anteriores, a jornada de hoje é curta. Perto dos 20km. Mas com o senão de passar por apenas 3 pequenas aldeias. E a uma delas estou agora a chegar. São 11h00 e tenho de almoçar agora, porque senão só em Alija.

 

Chego a Alija del Infantado. Penso que vou encontrar uma pequeníssima aldeia, pois o Guia dá a entender que não se passa nada por lá.

 

Uau! Que engano!! Alija é linda!!

 

 

 

Tem umas bodegas (adegas) fenomenais, pois são escavadas na terra. Quando estou a chegar à aldeia e começo a ver estas construções, só me lembro de algo similar que vejo nos filmes que retratam a zona de Israel à muitos anos atrás.

 

 

 

Vou jantar na Bodega-Restaurante “Bodegón de Ozaniego”. Incrível local!!

Embora tenha de voltar atrás no Caminho, pois o restaurante fica à entrada da localidade, não me arrependo nem um bocado.

Quando entro, parece que sou transportado para a Idade Média. Estou num castelo. A decoração é perfeita: Armaduras, archotes, mesas de madeira maciça. É tudo absolutamente fantástico! Tenho de descer uma enorme escadaria para chegar ao local da refeição. È extraordinário!

Escolho a especialidade da casa: Bife na Pedra. Uau!!! Se pudesse levar para casa o que me sobra, acho que tinha mais duas refeições garantidas!!

 

Escadaria para descermos à sala de jantar

 

 

 Corredor de acesso à sala de jantar

 

Nesta adega também se faz vinho. Aliás, esta é uma terra de vinho, feito ainda de forma manual, e ancestral.  

 

 

Difícil foi conseguir a chave do albergue. No guia diz para me dirigir ao Ayuntamiento, mas como é sábado está fechado. Uns velhotes que estão por ali dizem-me para ir à procura da Srª Maruca (?) – lá para os lados da igreja – que ela ou o marido devem ter a chave.

 

Tentem visualizar a situação: mochila às costas, cansadíssimo, um calor abrasador, numa terra desconhecida e quase deserta pois está na hora da siesta, completamente sozinho, a percorrer a vila à procura da Srª Maruca, vá-se lá saber quem quer que seja… É fantástico, não acham?

Depois de finalmente encontrar o marido da srª, o Sr. Amando, ele lá me leva ao albergue. Uma pessoa muito atenciosa que me vai explicando como funciona o albergue e informando sobre coisas úteis sobre a terra. Nunca conheci uma pessoa que caminhasse tão lento como ele. Incrível!!

O albergue é muito acolhedor. 3 quartos com 4 beliches cada, cozinha, etc. Apenas a apontar a falta da botija de gás, mas com o calor que estava, que bem que soube o duche de água fria!!!

A cozinha tem alguns produtos para os peregrinos utilizarem; sal, vinagre, açúcar, etc. Devem ser os próprios peregrinos que vão deixando. Acabo por utilizar um pouco de sal e vinagre. É interessante observar como uns simples produtos, de custo insignificante, aqui no Caminho , tomam outras dimensões pelo facto de serem deixados “de uns para outros”.

Resolvo aqui deixar umas embalagens de tortelinis que trago na mochila desde Portugal. Não, não estou a fazer uma boa acção… apenas já não posso com eles às costas e não gosto nada de comer aquilo. Assim, como têm validade de 2004, pode ser que alguém no Caminho lhes dê mais valor que eu.

Pela primeira vez vejo um “Livro de Peregrino” no albergue. Já sabia da sua existência pelo guia, mas ainda não tinha visto nenhum.

Trata-se “apenas” de um livro em branco que vai sendo escrito pelos peregrinos que passaram por esse local. Quase como um Livro de Visitas. Claro que escrevi também algo lá.

Passo algum tempo a ler este livro. Fica-me na memória um caso de um peregrino que caminha 2 dias atrás de uma cubana, que vive em Barcelona. Assim, ela quando está num albergue que tenha livro escreve e deixa-lhe uma mensagem. Ele, passados 2 dias chega até lá e lê o que ela escreveu para ela e “responde-lhe”, sabendo que o mais provável é ele nunca ler o que ele lhe escreveu. Lindo, não acham?

Os meus pés estão muito melhor. Estive com os pés “de molho” numa “Fonte Medicinal” no alto da vila. Não sei se fiquei sugestionado, mas o facto é que os pés parecem estar mais descansados.

Ficarei a saber mais tarde que há albergues em que é preciso pagar (embora, se não tiver condições de pagar, posso passar a noite) e outros que têm uma caixinha à entrada para os peregrinos deixarem algum dinheiro para ajudar na manutenção do albergue. Deixo 5eur em dinheiro pela 1ª vez. Pela atenção das pessoas, a simpatia do sr. Amando, o cuidado que têm com o albergue, os pequenos luxos como poder sentar-me numa cadeira com braços e ter uma secretária à frente…. Só quem fez o Caminho pode entender estas emoções.

 

 

 

Esta tarde passei por “Puente de la Vizana”, com a sua ponte romana fabulosa.

 

Nota do autor em 2009

Em 2002, quando fiz o Caminho, não me apercebi deste momento. Só hoje, em 2009, ao ouvir pela primeira vez as cassetes áudio que gravei é que tomo consciência que foi nesta altura que “entrei” no Caminho.

Foi a partir deste momento que a mente se limpou. O despojar das ideias pré-concebidas, o ter de agradar a todos…

Passamos o nosso dia-a-dia com uma lista de prioridades, no mínimo discutível, e que nos leva a dar mais atenção a coisas e situações que não o deveriam.

 

O Caminho ensinou-me, a partir deste momento, a ordenar de outra forma as minhas prioridades. Aprendi que não vale a pena estar sempre a fazer um drama porque o vizinho não fechou a porta do prédio, porque o meu local de estacionamento foi ocupado por outro. Mas, o que isso interessa?

A introspecção que comecei a fazer neste momento e que me acompanhou nos restantes 12 dias reordenou a minha lista de prioridades.

O importante agora é tratar de mim, dos meus pés. Sinto-me em maior contacto com o meu “eu”. O facto de me colocar na primeira linha das prioridades não tem absolutamente nada de egoísmo.

Como posso eu fazer as pessoas que me rodeiam felizes, se eu, em primeira instância, não o for?

Como posso exigir dos outros, se não exigir primeiro de mim?

Foram estas apenas algumas das coisas que o Caminho me ensinou.