2º Dia - 10 de Setembro de 2002 – 3ª feira

Calzada de Valdunciel - Villanueva de Campeán – 32,6km

 

9h10 - E estou a sair. Continuam as rectas intermináveis.


 

 

 

 

A noite foi terrível. Embora durante o dia esteja muito calor, à noite faz um frio de rachar. Faz lembrar as variações de temperatura no deserto.

Era suposto a tenda ser impermeável. Mas não é.

As paredes gotejam água por todo o lado. Nem pensar em lhes tocar ou vou-me molhar.

 

Acordei várias vezes durante a noite cheio de frio. O saco de cama que trouxe é fraquito. É bom para acampar na Costa da Caparica em Agosto…

 

Tive de “vestir” o blusão polar (que me servia de almofada) como se fossem umas calças.

 

O dia é de sol. Muito calor.

 

Inicio a caminhada e até El Cubo de la Tierra del Vino vou sempre por estrada de alcatrão. É terrível para os pés. E a mochila hoje parece-me mais pesada…

 

Chego a Villanueva de Campeán, onde vou dormir hoje.

É aqui que começo a sentir o feeling do Caminho. E já explico porquê.

Cheguei já tarde. Foi uma jornada muito longa e com muitos quilómetros. Foi um dia muito difícil. Acho que o corpo ainda não se adaptou a esta nova vida de passar os dias a caminhar. Foram quilómetros e quilómetros de rectas. Tudo plano. Debaixo de um sol fortíssimo. Sem árvores, nem casas, nem água. Nada. Apenas muito calor. E eu sozinho a caminhar. Sem ninguém com quem falar. Mas talvez isso me faça bem.

 

Como tenho usado calções, tenho as pernas completamente queimadas do sol.
A bolha do pé direito voltou a aparecer. Quando tirei o compeed tinha uma bolha 3 vezes maior que ontem.
 
Ao chegar à povoação dirijo-me para o único café da pequeníssima aldeia, pois o Guia informa que tenho de ir lá pedir a chave do Albergue.
 

A Família Jambrina tem o único café nesta pequena terrinha no meio de uma imensidão de campos cultivados.

 

Bar "Jambrina"


 

A srª do café (não me recordo o nome) pediu a um moço que me fosse indicar o local onde vou pernoitar.

O albergue tem apenas 3 camas e uma casa de banho. Ele diz-me que acha que o duche é de água fria. Mas isso não me importa. Depois da noite passada, qualquer coisita é um luxo!
 
Quando experimento a água sinto um calafrio de tão fria que está, mas, surpresa das surpresas, eis que começa a sair água quente. Nem consigo descrever o que senti quando me apercebi que iria tomar um banho (o 1º desde que saí de Portugal) de água quente. Uau!
 
Depois do revigorante duche, lavo a roupa e trato dos pés. Esta vai passar a ser a minha rotina ao final do dia ao terminar a jornada.

Quando regresso ao café conheço o dono – o Sr. Manuel.

Perguntou-me se eu jantava lá. Relembro que este é o único café da terra. Por isso, quando há peregrinos geralmente jantam lá no café.

 
Digo que sim, que irei jantar lá. À hora do jantar o café fica deserto e a família janta na cozinha, enquanto que eu fico na sala numa pequena mesa.
O Sr. Manuel pergunta-me se quero peixe ou carne. Deve estar a brincar – penso eu. Que importa se é uma refeição “a sério”, coisa que desconheço desde à dois dias.
 
Uma tortilha (daquelas verdadeiras…), Filetes de pescada. Para beber coloca-me na mesa uma garrafa de vinho e uma de gasosa “La Casera”.
Estava com tanta sede que bebi quase a garrafa toda de gasosa. Do vinho provei apenas um copo, mais para não fazer desfeita pois era um vinho caseiro com um sabor a que não estou habituado…
 
 

Para sobremesa deliciei-me com uma nectarina.

Depois do jantar, a família regressa à sala do café e o Sr. Manuel foi buscar um licor amarelado para me oferecer. Serviu num copo de shot dos grandes.

- Então, mas o que é isto? - pergunto eu.

Diz ele: Beba, beba! – diz-me ele.

Provei o licor e gostei bastante. A primeira impressão foi de um licor com pouco teor alcoólico, muito doce e bastante apetecível.

Nisto aparece a filha, Andreia, que diz para o pai: Ó pai, o que é que lhe deste a beber?

Fiquei a pensar – Hum, que se passa?

Bom, tinha sido um licor de hierbas. É um licor muito bom e fiquei fã. Mas passados cerca de 1 ou 2 minutos, começa a subir-me à cabeça… Começo a suor e a ficar com sede…

Diz-me sr. Manuel: Se beberes dois destes vais até Zamora num saltinho…

Pois claro! Vou movido a álcool!

 

Passo mais um bocado da noite a ouvir histórias de peregrinos que o Sr. Manuel conta com evidente emoção. E mostra-me fotografias, quadros, lembranças, que lhe chegam de todo o lado de mundo como recordação e agradecimento.

 

Conta-me a história de um grupo de peregrinos brasileiros.

Eram 7. O caminho estava a correr bem, mas ao chegarem a Villanueva de Campeán, havia uma moça que estava muito mal dos pés. Tinha muitas, muitas bolhas que já quase não conseguia andar.
Como o grupo não podia parar muitos dias pois já tinham o bilhete de avião de regressão ao Brasil, ficaram num impasse – o que fazer?

A família Jambrina aconselhou a que ela parasse um ou dois dias que eles iriam tratar dela. A moça exigiu que o grupo continuasse e se ela ficasse boa iria ter com eles a pé, senão encontrar-se-iam em Santiago de Compostela.

Esta não é uma decisão nada fácil. Para mim, uma opção dessas já seria muito difícil de tomar, e eu vivo perto. Agora imaginem uma pessoa que vem propositadamente do Brasil…
 
Durante dois dias trataram dos pés da peregrina. Depois, ela sentiu-se em condições de continuar o Caminho.

Passados uns tempos receberam um quadro com a fotografia dela em frente à catedral com uma emotiva dedicatória. Ela tinha feito o resto do Caminho sozinha e recuperou um dia, pelo que se juntou ao seu grupo em Santiago. Estava tão feliz.

 

Os olhos do Sr. Manuel brilhavam de emoção enquanto me contava esta história. Isto, sim, é o Caminho...